domingo, 2 de fevereiro de 2014

I
A escrita é a sintaxe do choro.

II
A noite é longa e o poema não faz sentido.
Está frio.

III
O poema sai dos dedos.

IV

Os dedos são mutilados.

V
Os corações estão abandonados ao desapego dos dias.

VI
O meu coração é mutilado.

VII
Gosto de recortar poemas.

VIII
A pressa dos relógios atira-me para o turbilhão da loucura.

IX
O médico disse que tenho dor do membro fantasma.

X
Ouvi a palavra 'amor' e dei uma gargalhada.

XI
A escrita é a purga do riso.

XII
Os lápis deixaram de se cravar nas folhas.
os dias de nevoeiro fazem-me dor de cabeça
podia ser da luz clara, claríssima
que me atordoa os sentidos
e me faz entrar para um labirinto
tal como Ariadne
mas sem corda
sem caminho de volta
entrar
percorrer
encontrar monstros
que mordem
e envenenam
e não ter corda para seguir
e voltar para trás
embrenha-se o viajante
no nevoeiro
e não volta mais

ou não volta o mesmo

«a dor de todas as ruas vazias»

relembrando Al Berto


Poderia ser noite
ou dia
os olhos nada distinguem
porque veem para dentro
as ruas respiram ofegantes
o chão pisado por milhares de pares de sapatos
todos os dias
a todas as horas
os cheiros, os sons
e mesmo assim ecoa
a dor de todas ruas vazias
é pedra, betão, paralelos
não sei
a dor de todas as ruas vazias
o vazio
a dor
as ruas
palavras escondidas em livros
carne cauterizada no papel
e a dor de todas ruas vazias
do coração que de tão cheio
esvaziou
oco
desapegado
selvagem

A dor do desapego
as paredes manchadas o chão árido
de memórias
que se esvaem
como grãos de areia
misturados
noutros grãos
de areia
e lixo
e lodo
e lama
e coração revolvido
esquartejado

não se sente a pele nem os lábios
nem as feridas
nem as palavras
restaria um último suspiro
que fica suspenso
na letargia dos músculos
na embarguez amarga
de uma voz que se ouviu
outrora
numa página
perdida no sussurro sepulcral
de um livro fechado na estante