sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Não sei.
Não me perguntem o quê
Porque não sei.
Já não sei não saber,
Não sei não querer saber
E não sei como divagar em mim.
Planeei viagens ao mínimo detalhe,
Criei uma desconcertante aventureira
De botas enlameadas e determinação encerrada no olhar.

Quando senti, o sol queimou-me de tão abrasador,
De tão macio, de tão próximo da realidade,
De tão diferente de mim.
Tiraram-me a venda invisível e eu simplesmente não sei.

E agora sou eu que me interrogo horas a fio
Enquanto o relógio avança, lânguido, pelo tempo,
Quem deixei pelo caminho enquanto trepava às arvores
E olhava a terra cá em baixo tão genuína desejando poder atirar-me e
Sentir.

Não, não sei.
E toda esta minha ignorância me leva a mim,
Numa incerteza de passos e passadas,
De atropelos e quedas em escadarias de sonhos.
Não saber divagar e perder-me em mim é pura e ingenuamente
Saber-me.
É estranho rabiscar cadernos
Se o que quero é riscar palavras.
Estão todas concentradas algures no meu corpo,
Escorregaram-me dos dedos inseguros para parte incerta.
Se calhar tenho as palavras nos pés
E estou de cabeça pra baixo

Ou então estou cansada para me mexer
E estou deitada em cima de folhas de cadernos
Rabiscados e escritos,
Palavras que correm e atropelam linhas ou quadrículas.

Ah! É isso! Vou passar a escrever em cadernos quadriculados.
Finjo-me de amiga da Matemática e ponho ordem no ser
E aprendo a resolver problemas.

(Será por pouco tempo porque, afinal,
Sou ordenadamente desordenada
E vivo na minha bagunça arrumadinha
Como livros gastos nas estantes
Ou na caixa de cartão no chão do quarto
Porque me cansei de prender prateleiras à parede,
Vê-las desabar, desvirginar tinta branca
E rachar madeira quando a noite cai.)

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Por que voltou ele impiedoso e feroz?
Depois de uma batalha desigual
Em que o vencedor saiu vencido,
Pude finalmente encontrar um tempo de tréguas.
Como se a euforia das manhãs e a esperança de uma nova vida
Me trouxessem alento e rasgassem os cortinados
Para deixar entrar o sol no quarto
E acariciar a minha pele.

Por que voltou a rondar os meus sonhos
Que acordam em pranto,
A pregar-se ao tecto do meu quarto durante o dia
E a passear-se por ele durante a noite
Não me deixando dormir?
Só a fraqueza do corpo me sossega.
O resto continua em carne viva
E a sangrar mais do que queria,
A viver no lugar errado,
A existir porque sim.
desaprendi as palavras
por as ter trancado dentro de mim
não sei se no coração ou no cérebro
se nas mãos ou nos dedos
mas não as descubro
e perdi-me num labirinto cheio de luz
que descobri ser eu
num instante em que por acaso
me perguntei o que buscava
e quantas sebes havia arrancado
por que me tinha arranhado toda
por que tinha o cabelo desgranhado
e lágrimas insensíveis a saltar-me dos olhos
como se fosse uma menina perdida
no meio da floresta

só ouvi murmúrios surdos
ecos inaudíveis
vi palavras cegas
com os olhos vendados
e a alma incapaz de escrever
ou apenas de juntar sílabas
as mãos presas gesticulando
e na boca um sabor a agonia
Sabe bem voltar a casa
E ver as labaredas consumir a madeira.
Enroscar-me numa manta e dormir no sofá
Com a casa escura e as luzes acesas.

A minha mãe vai reclamar da conta da luz
E eu vou dizer que não carreguei em interruptor nenhum
E muito menos que saí do sofá para acender a casa
E apagar a luz.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Doeu chorar sem alma, sem corpo
Tendo corpo
E tendo o coração a sangrar o dia todo,
A noite toda. Gotas de sangue a cair no chão,
A enfraquecer a carne e o gesto.
Olhos que se apagam como candeeiros cuja lâmpada fundiu;
Como trovões que caem em árvores e provocam incêndios;
Como fumar um cigarro e não sentir a nicotina
A invadir o corpo.
Escrever com uma caneta sem tinta
E ter palavras invisíveis perdidas nas linhas do papel.


Doeu chorar sem calma, limpar as lágrimas à manga da camisola,
Olhar um espelho e não ter reflexo. Naufragar num beijo.
Perder a terra. Ser um galeão saqueado por piratas.


Doeu como a arma que se dispara e cuja bala fere o corpo
Deixando cicatriz. Doeu pisar as pedras da calçada com sapatos
Mas descalça, não sentir vidros e cortar-me, torcer o pé ao andar de salto
Porque a angústia me fez correr em terreno incerto.


Doeu ver uma palavra desferir o golpe mortal
Na minha alma e não ter direito a um segundo de misericórdia.
Só sangue e…vazio.

terça-feira, 14 de abril de 2009

hoje morreu um relógio meu amor
o coração enfraquecido meu estacou no tempo no meio da sala
quando as palavras se afogaram em gritos
de gaivota num dia ao fim da manhã.
nao esperava o toque
a mão que se desprende do corpo
e avança para a tua pele e te acaricia suavemente.

adeus meu amor
a vida retalhada num globo de areia que chocalha
e os grãos que caem na dispersão do que houve
e não o negas porque o sorriso que o teu pensamento
obriga os teus lábios a esboçar
esconde o sonho do que poderia ter sido
se ásperas palavras o teu coração infame
não tivesse desprendido.


o relógio está envolvido em seda pura
como a minha pele que tocaste
e rendido no fundo da caixa.
Tudo riscado.
O preto da caneta no papel. O assunto da agenda.
A paixão arrancada do coração.
Dói-me a cabeça. Estou ausente de mim.

Perdi-me cá dentro quando virei o mapa
Ao contrário.
Tenho andado em círculos,
A correr
Desesperada,
A passar noites
Em claro
E dias na
Escuridão.

A escrever,
A pensar,
A saborar café atrás de café,
Cigarro atrás de cigarro
Porque quero um vício.

De tanto disfarce nem a nicotina absorve a minha alma.

Na loucura dos meus dias risco cadernos
E enveneno o desejo que arrepia a minha
Pele.
Sacio o corpo em noites ao relento,
Madrugadas de luar e de trovões.

Tenho pressa para chegar ao fim da página,
Ao fim da garrada de néctar que acompanha a minha
Solidão
(Solidão...solidão...)

A voz parou na garganta,
Ausente a essência da palavra,
O sentido nu e cru perdido nos
Lábios
Quedos.
É o que nos resta.
Não me faz falta ouvir a tua voz.
(Tu não queres ouvir a minha.)
Os dias correm como sempre correram.
(Os meus não.)
A chave continua a abrir a porta apesar de gasta.
(Perdeste a tua chave.)
Eu entro em casa, atiro-a para cima da mesa;
abandono a mala que me pesa o dia todo no ombro esquerdo.
(Só a uso no ombro esquerdo.)
Descalço os sapatos, o casaco já incomoda.
(E tira-se, dizias tu com olhar malandro.)
Chego ao sofá e sento-me.
(Sozinha.)
Sinto a porta a bater e penso que decidiste voltar.
(Eu joguei a tua chave pelo vidro do carro.)
Nada. É o que nos resta.
Tem tão poucas folhas de vento.
Um dia. Hoje não falo de sol, de chuva, de trovões ou de nevoeiro. Nem de arco-íris, nem neve, nem calori, nem frio.
É um dia em que o teu corpo insaciável não pressiona o meu. A tua boca adúltera hoje não sussurra nos meus lábios. A minha mão não vai afagar mais os teus cavelos, o meu riso não vai ecoar na noite. Nem em sonhos. Só em palavras que nem sequer são pensadas. É o corpo que as atira, revoltadas, para os livros. Mas as folhas são poucas, são poucas. E são de vento. Serão arrancadas. Só vai sobrar a capa. Estilhaçada, rasgada, destruída. E eu estarei lá para a apertar. E olho para a minha mão ainda macia e lisa. Mas vai ter uma cicatriz profundadepois de sangrar incessantemente, depois de sarar e voltar a abrir até acalmar.
Tempo, o gigante indestrutível, o meu arqui-inimigo. Estou sedenta dele, quero bebê-lo sofregamente. Mas tenho de o saborear. Senti-lo inutilmente insosso, brevemente doce, terrivelmente acre. Sentir a canela que o polvilha, a noz-moscada que o apura.
Ainda não sei se gosto do tempo, mas hoje afinal está a chover.
Eu e tu. Só nós.
O branco, o verde e o cinzento.
O mar e o azul profundo.
A areia límpida da cor da minha alma.
O amarelo-fogo do sol.

Sem nome, quem sou?
Apenas eu fundida em ti;
Olhares furtivos pela pequena janela.
Os caçadores vorazes do lado de fora,
Os olhos que espreitam, palavras que se ouvem
Quando os amantes sussurram.

Tu e eu não somos nós.
Tempo, sempre o tempo no meu encalço.
Ainda não me trouxe rugas
Nem me deixou a pele velhinha,
Mas encheu-me a mão de cicatrizes
Todas umas em cima das outras;
Os olhos vazios de lágrimas,
Um corpo vagabundo na rua desejando
Uma calçada fraccionada em pedras de lua
E pedaços de papel ardente.

domingo, 22 de março de 2009

Estava escuro na avenida. O relógio já despertara toda a cidade. Sentia-se o cheiro do café acabado de fazer, o açúcar dos bolos polvilhava o ar frio da manhã. Carros, autocarros, gente apressada pelas ruas, luzes de candeeiros solitários que estavam prestes a adormecer. E nevoeiro, muito nevoeiro. Casacos de lã e botas. Já era Primavera e ninguém a vivia. Luvas, cachecóis e gorros. E faces sem expressão, rostos sem sorrisos. Nem sei se vale a pena descrever os passeios que sussurram e que uivam quando os saltos da mulher os pisa, ferindo-os na sua dureza. Ela, cativante, atravessa a avenida vezes sem conta. Vai ao banco, ao café, respira no coração da cidade. Óculos escuros a esconder os olhos negros. A carteira pesada no ombro. Sempre no mesmo, no esquerdo. O coração preso a bater descompassado, a seguir um ritmo desconhecido, mais morto que vivo. Resiste ao aroma do café, ao açúcar dos bolos, ao nevoeiro atordoante, ao sol escondido.

sexta-feira, 20 de março de 2009

"O que é?", perguntaste-me tu ao entardecer. Os últimos raios de sol iluminavam a avenida. Carros e buzinadelas, o passeio cheio de sapatos apressados, de sacos de compras nas mãos. Uns que vêm em silêncio, aquele que ouve música e sente o ritmo pulsar e explodir no próprio corpo, deixando o movimento apoderar-se da sua alma em plena rua. E com toda a gente a olhar. Reparo no esgar de espanto do motorista do autocarro. Por pouco não teve um acidente ao olhar para aquele.
Insistes. "O que é?". E eu tardo em responder. Estou a saborear as palavras, a tentar encontrar o tom exacto. Estou a mastigá-las devagarinho e custa-me dizê-las porque as sinto. Nunca reparaste que a minha voz é muda? Só o papel e a pena me preenchem. Só quando a mão desenha letras e forma palavras.
O grande muro que cerca a propriedade, a fonte, o silêncio, o instinto. Instinto. Nós. Amor e ódio, céu e inferno. Tudo no mesmo minuto. Uma escadaria cheia, um risinho nervoso.
Vamos as duas pela avenida. Perguntas-me "o que é?".
São as cores do Outono, Mariana.
Não vou dizer nada com sentido
Nem com formas
Nem com palavras
Nem com imagens
Nem com símbolos
Nem com gestos
Só com olhares
E histórias dentro de olhares
E noites vincadas em dias
E sóis de Inverno que trazem constipações
E narizes ranhosos e tosse
E que prendem a voz na garganta
E que fazem pigarrear antes de falar.


Bola. Vermelho. Azul.
Menina. Sol. Lágrima.
Comi um coração de papel.
Não tem de ter sentido,
Só precisa de estar cheio.
Hoje já era escuro e a cidade estava ausente.
Mas lá. Era eu no meio do nevoeiro, as luzes cansadas
Dos carros que querem ir para casa.
Apeteceu-me engolir a cidade.
Já não sentia o chão nem o meu próprio corpo.

Pensei na morte, na escolha. Se eu quisesse, num segundo misterioso,
Atravessaria a rua sem olhar para os carros que seguiam a alta velocidade.
Tinha perdido o meu corpo, tê-lo-ia deixado ausente de mim,
Ausente de cheiros, de cidades, de pessoas que se cruzam comigo todos os dias
Em dias diferentes quando atravesso a rotunda.
O pensamento estava ausente do meu corpo, a voz ausente da garganta,
O grito ausente da voz.
A lágrima presente no olho.

domingo, 8 de março de 2009

Essa coisa, a paixão

Era bom que pudéssemos ir ao supermercado e pedir meio quilo de paixão; deve durar para o mês todo. Ou se calhar não. Mas também havia a hipótese de podermos regressar à superfície comercial e comprar mais. Só para abastecer o stock. Para o caso de acontecer algum imprevisto, tal como uma inundação, ou uma fuga de paixão, ou ainda um incêndio. No primeiro caso, estragava-se, secava e talvez ainda desse para usar a dita...paixão; no segundo, perda irremediável, pois seguir-se-ia uma explosão, um incêndio (o terceiro), muito fogo e queimaduras na pele. Se calhar também no coração, mas tenho as minhas dúvidas. Então, aviados de um quilo ou mais de paixão, felizes e contentes, regressamos a casa e começamos a consumi-la lentamente no dia-a-dia e ardentemente nos dias de ímpeto.
Mas (e infelizmente há sempre um!), ainda não descobri em que prateleira se escondeu a malvada! Se calhar não procurei bem entre as prateleiras das guloseimas e dos chocolates. Ou se calhar encaixou-se no corredor do vinho. A verdade é que não perdi muito tempo. Fiz as compras que tinha a fazer, paguei e pus os sacos no carro para arrancar a grande velocidade. Apesar de não ter descoberto a dita, desconfio que afinal não se pode comprar e muito menos num supermercado.
Essa coisa, a paixão, vem de repente e é mal educada. Não pede permissão para entrar nas nossas vidas, instala-se no nosso quarto, na nossa cama, usa a nossa roupa, abre-nos as gavetas e encontra os tesouros que temos escondidos. Escreve com a nossa mão no nosso diário. Mais, usa o nosso corpo, o nosso perfume preferido, calça todos os dias os nossos sapatos, mesmo quando são de salto fino e alto e fazem doer a alma. Instala-se porque sim. Ou porque não. O facto é que se instala e se apodera de nós.
Essa coisa, a paixão, que, soube agora que não se vende mesmo nos hipermercados; essa, a mal encarada, a que não pede licença, essa afinal até nos adormece quando o sono não vem, fazendo promessas de um dia melhor, lançando no ar a hipótese de um olhar, de um beijo escondido, de uma carícia trocada sem querer.
Mas essa coisa, a paixão, também pode causar dano (se ela realmente se vendesse, os senhores diriam que passou de prazo). E, continuando com esta gíria, quando isso acontece, reclamamos com quem, com o quê? Vamos a uma espécie de DECO apresentar uma reclamação? Escrevemos no próprio livro das superfícies comerciais? Exigimos o quê de volta? A quem?
Essa, coisa, a paixão, é pena que não se possa deitar fora e esquecê-la no fundo de um saco de plástico que os senhores do lixo recolhem, por cá, às quartas-feiras e domingos.
Bandida! Quando é apanhada em flagrante, faz uma expressão inocente. Descarta-se das culpas todas e diz que vai ficar sossegada e que não vai voltar a mexer nos corações ingénuos de novo. Mas não, é uma criança com a sede de mexer no proibido, de se sujar na terra, de correr o dia todo sem se cansar, de se lambuzar de chocolates, de dar uma risada e limpar as mãos à camisola branca que só assim ficou porque esteve dias na lixívia.
Essa coisa, a paixão.
Não há fotografias para as minhas mãos angustiadas rasgarem,
Não há retratos para arrancar da parede,
Não há cartas para queimar,
Não há objectos para atirar para o chão.

Há olhares clandestinos que se devem extinguir.
Há beijos para guardar em caixas velhas e empoeiradas,
Palavras que agora se confundem numa caixa de música
E que não são gritadas porque já não há corda.

Há uma tatuagem para arrancar.
A sangue-frio.
Há um coração para matar
Com uma faca afiada
Ou um punhal enferrujado.
Nunca me custou tanto descer uma rua.
Nem era pelo salto alto que ficava preso nos paralelos;
Não era pelo sol abrasador que me queimava a pele,
Não era pelo ventinho que me despenteava.

As pedras olhavam-se, sentindo pena dos meus passos errantes,
Chorando comigo por um caminho que jamais voltarei a fazer.
Eram poucos metros de rua. Suficientemente perto para chegar ao carro,
Suficientemente longe de mim.

Senti o sabor da terra molhada, fiquei com as mãos brilhantes quando caí.
E por acaso estava lá um homem. Compus-me. Os óculos de sol ainda escondem os meus olhos.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

A minha vida é uma manta feita de retalhos.
Momentos de seda doce, horas proibidas de cetim pecador,
Noite de veludo faminto de luxúria, de corpos que se encontram
Sem pudor.
Apetece-me morder os teus lábios,
Sentir o veneno entranhar-se no meu sabor
E apagar a luz.
Ficar em silêncio na escuridão da tua ausência.
Apetece-me fechar os olhos e sorver o teu beijo,
Morder o teu coração, sugar todo o desejo.

Morder-te os lábios e fazer-te sangrar,
Prender-te na minha boca enquanto a luz está apagada
E os olhos que nos rodeiam fechados.
Envenenar-te de mim, extrair paixão com dentinhos afiados
E deixar as marcas cravadas na tua carne.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Hoje alguém me falou de Matemática por um simples acaso. Dizendo eu que nesta vida só a morte não tem solução, essa pessoa recordou-me que há sistemas de equações sem solução. E a frase simples, e cujo conteúdo encaixa perfeitamente na Ciência, caiu como uma bomba no meu colo. Na minha ânsia de tentar convencer-me que qualquer problema que surgisse acabaria por se resolver, esqueci-me das incógnitas, dos X e dos Y que teimam em derrubar muralhas que surgiram por pura necessidade estratégica. Depois de uma guerra, de dias de fome e de sede, de noites em claro, há impedimentos entre o mais profundo de mim e aquilo que se vê no dia-a-dia. Peguei num pedacinho de céu de uma noite bela de trovoada, de um dia cinzento e chuvoso, de um radioso dia de sol e de uma noite de lua-cheia. Juntei uma concha do mar e um bocadinho de areia molhada que se colou aos meus pés na praia. Fui ainda desencantar uma flor e rezei para encontrar uma raposinha pequenina que me dissesse "Cativa-me". Colhi uma estrela, roubei um batom vermelho. Guardei as memórias lá no fundo e ergui a minha valente muralha. E o tempo, meu indecifrável amigo, espalhou a sua magia. Chorando de cada vez que atravessava o rio e olhando as suas águas dormentes, decidi deixar que a raposinha chegasse ao meu coração cercado de céu, de mar, de lua e de batom vermelho-sangue. E ela, sorrateira, prometeu-me baixinho ao ouvido que iria raptar o meu coração. Mais uma pitada de tempo se adicionou e eu comecei a surgir, ainda que a medo, lá do fundo do meu muro de flor, estrela e praia. E, aos poucos, esqueci-me que quando há mais incógnitas que equações o sistema é indeterminado. E foi assim que o vento espalhou o céu, o mar, a estrela, a lua e derrubou a minha muralha tão cheia de mim e tão vazia de nada.
Já caiu a noite. Tenho como companhia uma música e uma garrafa de vinho tinto-paixão. E talvez uma pequena lagrimazinha também bata à porta e eu tenha de me levantar do sofá para lhe abrir a porta, não a ver e apenas senti-la tocar o meu corpo e abafar a minha voz. O néctar vai aliviar a dor do meu pensamento, de uma lógica que encaixa pecinhas de histórias, que relaciona sentimentos e factos, que arquitecta relações de causa-efeito. Nunca tive jeito para abrir garrafas, só para saborear o doce travo do vinho e sorvê-lo enquanto os olhos fitam a imensidão do vazio. Cortei-me com o saca-rolhas e um laivo de sangue espalhou-se na minha mão, desenhando formas que nunca vi. Pressiono para que páre. Sem sucesso. Descobri que tenho o coração escondido na mão morena e pequenina. Vejo-o apertado, dolorido. Pede clemência ao pensamento, implora por uma noite de sono, sem sonhos, sem pesadelos. Só descanso para o corpo, só uma almofada e uma manta para que não sinta frio; pede apenas um par de horas de tréguas para poder, pelo menos, tentar disfarçar umas olheiras profundas. E pede tempo para aprender a lidar com o ciúme e a rejeição, com a paixão e com a revolta. Pede somente um par de horas para aprender a disfarçar brilhos apagados de olhares que irradiavam desejo.
Um copo de néctar saboroso. O segundo, o terceiro... Uma noite longa pela frente e uma prece incessante a Eros para que páre de disparar flechas contra a minha mão. Pshh...o meu coração pequenino está ali escondido e a sangrar para ninguém o ver.
O álcool que me corre nas veias e que não tem efeito absolutamente nenhum, a garrafa vazia, a sala vazia, a mão vazia... A mão? Onde está o coração? Atiro a garrafa para o chão violentamente, os cacos espalham-se, um deles, pequeno e quase imperceptível, rasga a minha carne. E, ganhando vida, entra em mim procurando raptar o coração fugitivo.
E não o encontrou jamais.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Faz-me falta a palavra mordida, envenenada de ciúme.
Roída, esventrada, sem essência.
Preciso que as palavras me saiam do coração
E não da boca, não da razão, não de noites perdidas a pensar.


Faz-me falta a palavra dolorida para combater a que me atingiu no coração.
Duas mãos para estancar o sangue que corre e corre....
Preciso de outra voz que não esteja gasta,
De um rosto novo, de um olhar diferente.

Quero chuva, sol, arco-íris. Tanto me faz.
As horas são todas iguais em diferentes relógios,
A noite continua a ser uma candeia apagada, morta.

Faz-me falta ser quem fui, quem não quis ser sendo.
Quero uma palavra qualquer para a minha raiva a transformar em cruel,
Para o meu coração destilar todo o veneno que o preenche.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Quis pegar no lápis, na caneta, na pena.
Quis ir buscar um papel vazio
Desejando atirar as minhas palavras ao acaso.
Quis pegar num caderno e arrancar todas as folhas,
Rasgá-las uma, duas, três vezes.

Quis pegar num livro e arrancar-lhe as histórias.
Já quis apenas querer.
Não tive coragem de destruir palavras nem de rasgar as folhas.

Hoje quero pegar numa pedra, atirá-la ao chão e parti-la em mil pedaços
Apenas com um gesto brusco.
Mas a minha mão já não tem forças,
Os meus olhos já não tem lágrimas para chorar a perda.

Fiquei à chuva com uma pedra entre as mãos.
Agarrei-a como nunca agarrei a minha vida.
E passaram-se horas, dias.
Vi o sol nascer e dormir todos os dias,
Vi a lua a sorrir e pontinhos brilhantes lá em cima.

Mas nada teve significado. Despertei apenas quando a pedra
Desapareceu das minhas mãos. Finalmente movi o meu corpo
E senti um pedregulho cinzento, ferido e frágil no lugar de coração.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Corpo

Sinto-me fraca e cansada.
Por não dormir. Por ter saído da cama porque senti frio.
Porque afinal o meu corpo lutou contra a minha mente
Todo o dia. Só fez uma pausa quando adormeci no sofá,
Morta de dor.

Mas em breve despertei porque a sala estava quente
E eu cheia de frio. Não sei quantas camisolas e agasalhos tinha.
Só sei que passei o dia cheia de frio.

A noite está a começar agora e já começo a ter frio.
Posso ter tomado dez ou vinte cafés que o efeito é contrário.
Tudo por causa do meu corpo contraído e fraco que não se alimentou
Do meu coração. Porque ele parou como pára um relógio numa hora
E num segundo qualquer.

Só não anotei a hora por causa do tic-tac do relógio.
Não gosto deles. Uso-os apenas quando o tempo está parado
E não me incomodam com aquele barulho constante.

O meu corpo quer fraquejar agora, mas não deixo.
Foi espancado até eu perder os sentidos e perder a alma
Numa rua que conheço. Mas arrastei-o pela cidade.
E ficou bem.

Só não sei onde perdi o coração.
Um dia vais acordar de manhãzinha e abrir a janela do quarto para ver o sol nascer. Já não o fazes há muito tempo. Os dias correram e atropelaram-se uns aos outros em silêncio. Sem gritos e com algumas lágrimas que se perderam por entre os milhões de passos que deste procurando o infinito. Mas um dia, logo de manhãzinha, irás até à janela. Uma qualquer para ver que o sol já não nasce. E pensarás, assustado, que te fugiu por entre os dedos escorregando num momento em que um coração parou, enregelado de dor. E nesse dia a tua lágrima cairá, sofrida e sem fim, no chão do teu quarto, que estará frio, insensível, livre de ti. No dia em que reparares que o sol que te aquecia todas as manhãs e de ti se despedia com um beijo suave e com a promessa de um breve regresso fugiu de ti, da tua crueldade, do teu coração de pedra, a tua lágrima cairá. Deixou de arder lentamente quando te deslumbraste com a imagem de um quadro. Era apenas amarelo e tu deixaste-te enfeitiçar por aquele sol fingido, pronto para te usar e para te deitar fora. E esqueceste o sol que do outro lado brilhava. Mas teimaste em fechar as cortinas e entristeceste-o. Ficou dias sozinho, sentindo-te do outro lado encantado, usado, e o próprio raio queimou-o. O teu gesto rude, a janela que fechaste... Oxalá tivesses apenas fechado a janela do teu quarto. Correste a casa depressa, descalço, não te importando com os cacos que reluziam na escadaria. Feriste-te e não te doeu porque já nem conseguias sentir. Voltaste a correr. Fechaste todas as janelas e isolaste-te no teu palácio sentindo-te um Imperador. E o sol continuou cá fora. Só. Sem ti. Espreitava para te tentar ver nem que fosse de longe apenas para te dizer que o brilho se apagara. E tu nunca o deixaste entrar na tua casa, na tua vida, dentro de ti.
Um dia reparaste que fugiu... Enfraquecido, cansado devido a uma espera que imaginava infindável, apenas partiu. E aí voltaste a abrir a janela. E a chamar o sol incessantemente, buscando ternura e conforto. Fartaste-te do teu sol falso. Mas não te lembraste do que deixaste cá fora. Não te lembraste da dor que causaste, do ciúme, do desalento. E não o encontraste.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Reviver o passado

Julgava eu que o choro convulsivo, magoado me tinha abandonado de vez. Não, estava apenas disfarçado de indiferença. E hoje senti o grito dolorido e sufocado. A voz que falha e o chão que nos acolhe. Senti os olhos a arder. O corpo sem forças. As lágrimas a cair e a acariciar o meu rosto queimando-o como já há muito não faziam, lembrando-o da densidade dos gestos, de palavras que ferem e ainda mais das que não foram ditas, das que trariam sorrisos e me fariam repousar serenamente.
Não. A dor voltou. Talvez porque eu própria tenha parado de fingir para mim mesma, porque tenha medo sem máscara, exposta e pura, apesar de todos pensarem que tudo em mim é falso quando, na verdade, estou despida à frente de todos, sofrendo em silêncio e sabendo qual será o final da história. Afinal chegou mais tarde do que o que eu previa: o choro e o chão gelado acolhendo a escuridão.
Por que me dói o coração se repudiei o amor?
Se me afastei para não sofrer, se o atirei para um canto
E o esqueci como se esquece o Inverno das folhas que o Outono
Arrancou violentamente das árvores e as fez cair no chão desamparadas,
mortas de tudo ou de nada, se é que algum dia tiveram vida...

Se o guardei no fundo do peito bem fechado para que irrompesse
Sagaz, louco para me castigar...
Se o pus de lado pensando que ele jamais voltaria a acolher-me
Nos seus braços delicados e insidiosos.

Se afastei a volúpia de sentimentos...
Se os reneguei quando o corpo caiu no chão frio e duro
Amparando o meu grito e toda a dor que se escondeu
Na minha pele disfarçada de desejo,
Amparando o meu choro triste, os olhos tristes que apenas entreabrem
Sem se preocuparem em ver porque afinal está escuro e já não há dia.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O Amor dói. O Amor dói e enfraquece.
O Amor é o Amor. Por ser Amor simplesmente dói.

Um dia pensei poder fugir do Amor.
Mas o Amor perseguiu-me sagazmente até me aprisionar
Num tempo qualquer num espaço qualquer.
Eu e o Amor escondidos por aí; amantes traiçoeiros.

Mas Eros descobriu o meu cativeiro e quando me possuiu violentamente
A minha vida acabou.
Eros divino acorrentou-me e acendeu uma fogueira naquela sala.´
Só consigo distinguir sombras, mas não as reconheço.
Presa horas a fio, o pensamento foge, o corpo fraqueja, dorido, preso,
Em carne viva.

E há feridas que não cicatrizam e o calor aumenta a dor.
Oiço os meus gritos, mas não tenho voz. Não podem ser meus.
Lutei até não ter forças, até não poder falar, sentir.

Mas o poderoso Eros num rasgo de loucura apagou a fogueira
E restei eu. Em silêncio e esquecida entre aquelas paredes.
Naquele tempo foi como se estivesse na sombra
Durante todas as horas. E via reflexos de luz aqui e ali.
E, de repente, vislumbrei que não estava sozinha.
Havia alguém naquele quarto, naquela cave, naquele sítio
Que não sei onde é, naquela data que não reconheço.

Senti um homem perto de mim. Olhava-me sempre fingido
Esperando que o cansaço me derrubasse para me poder cravar
Um punhal repleto de pedras preciosas no peito sem me matar,
Ferindo-me, cortando-me vezes sem conta, tentando purificar-se
No meu sangue que gota a gota ia caindo no chão enquanto os meus olhos se fechavam
Lentamente.
E ele esperou que nem mais uma gota caísse e uma gargalhada ali ecoou.