segunda-feira, 28 de abril de 2008

O sol, ensonado, esboça o último sorriso do dia.
Hoje, quando amanheceu, um cinzento ardente
Pintava o céu e eu, estranhamente feliz, fingia.
Mais uma vez o relógio me atraiçoou.
E a dor, lancinante, devagarinho percorreu o meu corpo.

Olhei-o. Nos olhos. Tentei pensar.
Mas o coração hoje magoou-me.
Sinto repulsa pela carne que desejo.
Mordi o lábio e um fio de sangue
Misturou-se no meu corpo.
Olhou-me, ávido de mim.

As mãos, trémulas, não passam a fronteira
Da luxúria, da volúpia, da pureza dos nossos corpos nus,
Abraçados, parados no Tempo que silenciosamente jurámos vencer.
Olhei-o, dissimulada, procurando na gaveta dos sorrisos.
Mas os meus olhos não conseguem mentir.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Hoje, sozinho na minha casa de paredes brancas e silêncio, penso. Penso muito e não consigo dormir. A imagem dela baila na minha memória... Cabelos e olhos negros, brilhando por me ver, naqueles corredores de desejo onde outrora nos cruzávamos. As mãos que eu beijava com ternura, a pele morena que amei inconsequentemente sem pensar que depois a deixaria partir sem sequer a demover. Fui cobarde. Menti e magoei-a. Quando nos víamos notava-lhe o olhar gélido, sentido, ardente. Sentia a sua dor como se da minha se tratasse. Também eu a desprezava, murmurando para mim mesmo que daquela forma não a magoaria nem a faria sofrer mais.
Mas hoje, velho e só, recebi uma carta dela. Perdi-lhe o rasto. Naquela sala jurou nunca mais ver-me, querer-me (como ela me queria...) e desapareceu... até hoje. E só hoje me apercebi do sofrimento daquela mulher que amei, que possuí com volúpia e desejo, que seduzi diariamente, com quem troquei beijos alados em corredores de quimeras, que olhei cumplicemente gozando da ignorância dos outros. E ela diz-me que me amou e que me ama e que jamais imaginarei o quanto a fiz chorar por dissimular um desejo que tive e que ainda tenho, as noites sem sono, olhando o céu negro e pesado, pensando em mim e perguntando-se se eu teria feito isto ou aquilo...
E eu, que amo ainda esta mulher minha, hoje estou sozinho e entregue às memórias e pensamentos que reprimi durante anos. Mesmo convivendo com ela, evitei tocá-la, senti-la perto de mim; fugi do seu olhar, fiquei sem palavras, fingi desejar outras... Tudo em vão. Um dia, numa escada discreta, olhei-a com paixão, desnudei o seu ser, recordei os detalhes do seu corpo, mordi o lábio, dei um passo em frente, olhei-a nos olhos e sorri. Ah! O seu olhar negro e radioso observando todos os meus movimentos, perturbando-me. E, de repente, parei. O olhar tornou-se gélido. Recuei. E mais uma vez perdi aquele que reconheço como meu. Ela partiu, chorando magoadamente. O seu corpo à minha mercê, a boca rosada a suplicar-me o beijo da reconciliação. E eu, cobarde, afastei-me e abandonei-a no vão de uma escada. Nem sequer olhei para trás.
Hoje todas estas memórias me destroem. A mulher que desprezei é a mulher que quero, que relembro ao olhar para a porta de minha casa, para as paredes, para a cama solitária em que durmo. O perfume dela permanece, o resto perdeu-se no Tempo implacável.
Quando me quis levantar e correr atrás dela, as pernas falharam-me; quando quis beijá-la docemente, dos meus lábios escorria fel; quando quis olhá-la tive vergonha. Quando me dei conta do erro, já os ponteiros do relógio haviam avançado e descobri um caminho sem retorno.
Sou escravo do silêncio, das memórias, da pele que beijei sofregamente. Sou escravo do meu destino.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Agora que veio a noite
E que recordo sem cessar,
Uma profunda vontade de dormir me invade.
Não posso acordar amanhã, amanhã não!
Depois de amanhã já será melhor!
Senti-me esvair em sangue,
Em dor; uma dor imensa que não acalma
E que só queima.
Uma fogueira viva, intensa!
Ai! Pobre de mim, suplicante, lutando contra o Tempo
E acalentando -ainda- que a chuva e o Inverno voltem
Para que possa voltar a ser, pelo menos, contente.

terça-feira, 15 de abril de 2008

A lágrima quer cair, mas eu não deixo.
Hoje venci! (Mas só hoje.)
Quero fugir daqui já.
O mar está à minha espera
Para me gelar neste tempo incerto,
Neste sol semi-escondido de mim, de nós.

É cedo ainda. Mal adormeceu a lua.
O céu está azul, mas feio
Só porque quero sair daqui já!

Já!! Não me ouviram?
Não me condenem! Não quero fingir mais
Porque não posso mais querer!

Saiam daqui, criaturas reles!
Ocas, hipócritas, horripilantes!
Malvada espécie!

(As horas não passam...
Tirem-me daqui os relógios!)

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Entregue a mim, na imensidão da sala branca vazia
Penso e rejeito lembranças.
Não quero falar, não me quero mover.
Nem sequer quero olhar.
Só assim não sei fingir.

Entregue aos pensamentos, no meio de uma multidão oca,
Recordo e avivo achas de fogueiras que já se deveriam ter extinguido.
De tanta luz, tanta cor, ficaram as labaredas magoadas, enraivecidas,
Que querem devorar tudo ao seu redor.

E se hoje me entrego a mim, na imensidão das horas paradas,
É porque um dia à luxúria me entreguei. Ócio de meros momentos
Lá atrás, no passado, hoje é fel e amargura.

Está um sol primaveril, uma manhã fria, plácida,
Diria até bonita e delicada.
Eu, da minha janela, carpo mágoas perdidas
Que é Outono e o calor deixou-me, subitamente.
O Inverno aproxima-se a passos largos.
É já amanhã, é agora.
Hoje nem sequer precisei de palavras.
Só quis fechar os olhos, fugir.
Só precisei de desviar o olhar,
Só me senti presa.

E o tempo nem sequer se compadeceu.
E eu, sangrando sofridamente, plácida,
Fervendo de raiva.

Hoje não quis as palavras de que tanto gostamos.
E nem quererei. Não ouso mais querer.
Dói tão profundamente o coração meio morto!

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Chuva

Chove torrencialmente lá fora. Toda aquela água divina expressa a revolta que está calada, contida dentro de mim. Toda ela grita através das nuvens cinzentas que pintam o céu e que não deixam ver mais nada.
Chove a cântaros; ouve-se o som da bofetada a bater na vidraça, não se ouve o meu lamento. Apetece-me ir lá para fora contar gotas de chuva. Assim não recordaria nem sentiria. Só eu e a chuva, a chuva revoltada que certamente também bate na janela do quarto dele, aquela que ele insiste em fechar. Apetece-me ir lá para fora sem guarda-chuva, sem protecção. Só eu, a chuva e a nossa revolta. Ela grita com Deus, com o Mundo, com as nuvens, com o sol; eu gritar-lhe-ia aos ouvidos até o deixar surdo, vociferaria, os meus olhos faiscariam até o queimar e fazer sofrer de dor. Mas no dia seguinte continuaria (e continuará) a chover, simplesmente porque não se pode fugir da ironia do Destino.
Encho-me de coragem agora; amanhã terei de a procurar. Durante a noite, de mansinho, enquanto eu sonho, ela foge da minha mente, já não é minha; brinca com o meu coração todas as noites e deixa-o apertado de tanto sofrer.
Lembro-me que um dia andámos à chuva. Os dois, sem ninguém saber. E também que, de repente, se fez sol e tudo se perdeu. Secou, mudou, desvaneceu-se. Julgando eu que o Tempo me traria a Primavera, deixou-me permanentemente um sol de Outono fraquinho; não aquece. Agora só me apetece dormir e andar à chuva. Só assim posso gritar e escapar de um Destino que sei que não posso aguentar. Agora não. Tenho o coração enfraquecido e a mente exausta de tanta guerra, destruição.
Subitamente apercebo-me dos vultos que me cercam. Sombras que se movem ao meu redor silenciosamente, perturbam-me. Só a sua simples presença me enfraquece. Tantas, tantas! Todas murmuram palavras soltas que reconheço. Também um dia as proferi. São fantasmas, são lembranças! Não quero mais! Não quero! Se algum dia sobreviver ao Tempo, o meu último grito será de alívio, de despedida.
É Outono em mim. Na luz dourada do crepúsculo, com o vento frio a cortar-me a pele, vou até ao mar.
Quero ser pequenina, bem pequenina.
Não quero saber o que dizem as palavras.
Não quero pensar.
Palavras sujas.
Pobres!
(Mas mais pobre sou eu que procuro as tuas palavras
Por aí perdidas no sítio onde moram.)