quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

-Vou dormir.
-É melhor, é.
Vira-se para o outro lado. De costas.
um
para o outro.
Puxa os cobertores até cima.O quente da lã sorve a pele.
tic
tac
tic
tac
Insónia dolorosa.
Uma flanela patética
rejeita-lhe as lágrimas.
tic
tac.
Estica o braço. Atira o despertador para o chão violentamente.
-O que foi?
-Detesto o som dos ponteiros.
-Ok.
tic
tac
tic
tac
tempo amorfo.
continua o fio de luz do candeeiro
desmaiado
da rua a atravessar o quarto.
-Que horas são?
-Não sei. Deixaste cair o relógio.
tic
tac
Levanta-se.
-Onde vais?
Veste-se na escuridão, a camisola ao contrário.
-Ai.
O fecho feriu-lhe a pele.
-Onde vais?, repete
-Embora.
Silêncio. Pupilas (in)diferentes
reagem.
-Não.
-Há tempo a mais neste quarto.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

O sabor a barco que tem a boca
Eugénio de Andrade

Das mãos
à boca
o calor que flui
na pele
um olhar em
concha
pintalgado de
mar
e um céu
raiado
nos contornos
das palavras
quebradas
(des)cristalizadas
Os frutos
amargos
nas pontas
dos dedos.
O sabor
no
caroço
Adão
o verde do espaço
e o éden
do ventre
cálido
E(r)va
bravia

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Já não sei chamar-te amor.
há paredes e pedras e muros
que me tapam os olhos
cimento bruto, inconsistente
que me prende o músculo,
um silêncio visceral
e calmante
que se apoderou da minha boca.
Amor, já não sei chamar-te amor.
Desaprendi o teu beijo
quando a tua boca
mentiu à minha
em segredo.

Xiu. Não digas mais nada, amor.
tens os olhos presos na expressão da face,
as tuas mãos tactearam o meu corpo inviolável
como se se saciassem na minha pele cálida, morena,
tua.

Adeus amor a quem não chamo amor
porque amor o mataste,
sugando-lhe a vida
e o sorriso das cordas vibrantes,
estupraste-me a alma
com ferocidade
voluptuosamente
perdendo-te em mim
amor
na cama virada
ao contrário
lentamente
mais rápido
um riso
cúmplice
veneno viandante
entre corpos
amantes
exaustos
adormecidos.

quinta-feira, 24 de março de 2011

é um vazio um monstro com asas de veludo um café frio
que caiu mal no estômago
tenho um travo a papel na língua um lápis aguçado encostado
à
garganta
pronto a rasgar a jugular e a jorrar sangue por todo o lado
sangue vermelho morto em fios em gotas em poças
sangue quente de ontem

quinta-feira, 10 de março de 2011

Do tempo

Quanto mais tempo irá passar
nas minhas mãos, na minha boca,
         pelos meus olhos,
            na minha pele,
no meu gesto inquieto, vulgarmente
frágil como se fosse um cliché
para que te lembres que a língua perde o sabor
e o perfume dos corpos comungando
da fome do corpo
dura apenas um segundo na eternidade finita
                         da memória?

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Nota breve em três estrofes

Agora que as mãos cálidas
arrefeceram
e um sopro de noite
estupra
a janela, que resta perguntar?

Não há voz dorida e
des-pe-da-ça-da-men-te
enjaulada
que se atreva a dar
uma entoação
de ponto de interrogação.
Não resta perguntar
nada
só silêncio
ao fundo do quarto
pergunta e responde,
nurmurando,
gemendo,
bramindo impropérios
em voz-off.

Agora que o frio invadiu a janela do teu
quarto,
meu
amor,
resta-te o vidro escrupulosamente
cortado
e uma cama
desfeita.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Do Gosto

A pele na pele.
O mel
que escorre
pelas pernas
lânguidas
longas
frementes.

A pele na boca
da pele.
Nua e fria.
Sem aroma.
Língua sem sabor
que passar pela
perna
longa
lânguida
desenhada
sem
mel.

(queimada)
Pele sem pele.
Tenho-te na memória dos dedos, nos risquinhos quase imperceptíveis dos lábios.
A minha boca palpitante, com o coração entalado no esófago.
Como esquecer a minha própria impressão digital?
Um amor de sofá emprestado e murmúrios na pele.
Tenho-te na memória dos meus-teus-olhos perpassados pela
sombra.
Sempre gostei da sombra dos teus olhos,
aquela que vi passar quando me deste o beijo mais
seco
áspero
recusado
que uma boca pode dar a outra.

Foi nesse momento que mastiguei o coração,
que o sorvi de um trago
e o coloquei de volta lá
naquele sítio a que chamam peito.
Continua a ter duas aurículas
e dos ventr(e)ículos.
Ou talvez pedaços mastigados
de prazer
e de um cinzento corroído.

Nunca quis que me visses por dentro.
Não.
Ou talvez um sadismo fremente
quisesse que a tua digital
me timbrasse a carne
como uma tatuagem
que não cicatriza.
Desenhada e aberta.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Gata

Tinha olhos de gata no cio. Profundos, densos, sorridentes. A boca sedenta, os dedos esguios. Tinha olhos de gata. No cio. Brilhantes, esquizofrénicos, inquietos. Passeava pela rua de fato decente, gabardine composta. O cabelo meticulosamente alinhado e um conjunto de pulseiras que tilintava quando o salto pisava o chão inebriado. Gostava de passear pelas ruas de óculos de sol e esconder os olhos. De gata. No cio. De carregar a carteira na mão e balançar as ancas. Observar os olhos de quem a via passar. Olhos no cio. De gata escondida. Escondidos. Poucas palavras saíam da sua boca voraz. Pouquíssimas. Saíam-lhe sim como faíscas. Dos olhos. Observava os gestos das pessoas que não conhecia, que se cruzavam com ela nas lojas, no supermercado, na rua, no café, nos jardins. O dente a morder o lábio, os lábios contraídos. A mão inquieta no cabelo, um sorriso disfarçado. Lolita. Fingia enterrar os olhos e a alma nas palavras de Nabokov. Para olhar sem pudor. Para sentir prazer num voyeurismo inconsciente. Espiar os casais do parque. O beijo de olhos abertos, a mão travada a caminho da blusa. E ficava ali horas a fio no banco de jardim a imaginar-se nos braços daqueles homens, todos eles diferentes, renovando-se à passagem das horas.  Os seus olhos de gata a faiscar, as mãos numas quaisquer calças. Puta. No cio.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Eu nunca levei um tiro. Pelo menos um que me rasgasse a carne, que fizesse sangue sair do meu corpo para o chão. Mas estou inerte na cama, a respiração (des)compassada, o peito que sobe e desce e pára e volta a ter movimento, o anel preferido no dedo, os lábios molhados. Eu nunca levei um tiro, mas estou a sangrar por todos os lados, está a doer em cada pedaço de corpo como se a carne estivesse rasgada, como se as forças me faltassem, como se a voz se desarticulasse.