domingo, 4 de outubro de 2015

Poema do fim

Precisamos de chorar os nossos mortos
mesmo que eles estejam vivos.
Os olhos já se esvaziaram
E quando se olha
ao
fundo

se encontra uma tristeza imensa
que os
inunda.

Precisamos de chorar os nossos mortos
dentro das linhas invisíveis que nos cosem
a alma
o coração
e os mantêm unos
mesmo que semi-desfeitos
ou aos pedaços
ou esburacados

Uma coisa mesmo não sendo
inteira não deixa de ser uma coisa
com sentidos
e sem sentido
no decorrer dos dias e das lágrimas
que atravessam calendários

(nunca gostei muito de calendários
e devo ter três ou quatro na carteira
e um ou dois espalhados pela casa
para que mesmo que esbarre com o
tempo
ao transpor a porta da cozinha
ou ao remexer na carteira
me lembre
-sempre um cliché-
que o pior e o o melhor do
tempo
é que ele




passa.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

I
A escrita é a sintaxe do choro.

II
A noite é longa e o poema não faz sentido.
Está frio.

III
O poema sai dos dedos.

IV

Os dedos são mutilados.

V
Os corações estão abandonados ao desapego dos dias.

VI
O meu coração é mutilado.

VII
Gosto de recortar poemas.

VIII
A pressa dos relógios atira-me para o turbilhão da loucura.

IX
O médico disse que tenho dor do membro fantasma.

X
Ouvi a palavra 'amor' e dei uma gargalhada.

XI
A escrita é a purga do riso.

XII
Os lápis deixaram de se cravar nas folhas.
os dias de nevoeiro fazem-me dor de cabeça
podia ser da luz clara, claríssima
que me atordoa os sentidos
e me faz entrar para um labirinto
tal como Ariadne
mas sem corda
sem caminho de volta
entrar
percorrer
encontrar monstros
que mordem
e envenenam
e não ter corda para seguir
e voltar para trás
embrenha-se o viajante
no nevoeiro
e não volta mais

ou não volta o mesmo

«a dor de todas as ruas vazias»

relembrando Al Berto


Poderia ser noite
ou dia
os olhos nada distinguem
porque veem para dentro
as ruas respiram ofegantes
o chão pisado por milhares de pares de sapatos
todos os dias
a todas as horas
os cheiros, os sons
e mesmo assim ecoa
a dor de todas ruas vazias
é pedra, betão, paralelos
não sei
a dor de todas as ruas vazias
o vazio
a dor
as ruas
palavras escondidas em livros
carne cauterizada no papel
e a dor de todas ruas vazias
do coração que de tão cheio
esvaziou
oco
desapegado
selvagem

A dor do desapego
as paredes manchadas o chão árido
de memórias
que se esvaem
como grãos de areia
misturados
noutros grãos
de areia
e lixo
e lodo
e lama
e coração revolvido
esquartejado

não se sente a pele nem os lábios
nem as feridas
nem as palavras
restaria um último suspiro
que fica suspenso
na letargia dos músculos
na embarguez amarga
de uma voz que se ouviu
outrora
numa página
perdida no sussurro sepulcral
de um livro fechado na estante

domingo, 2 de junho de 2013

O meu telemóvel morreu.
Eu sei que o tema não é
poético
mas o meu telemóvel
que morreu
tinha o meu último poema
(o único de há meses)
escrito na escuridão e na luzinha pálida
de um ecrã moderno
em que as letras
não se desenham,
dizia eu
que o meu último
poema
se perdeu
morreu
o telemóvel não liga
não me lembro
das palavras exatas

era sobre um coração a bater na
mão
e uma metáfora e um provérbio
de ter
o coração
nas mãos
(quem o tem)


(talvez não só tenha morrido
o telemóvel,
o poema,
a facilidade da tecnologia,
talvez o coração
talvez)

terça-feira, 19 de junho de 2012

O corpo quer-se
quente
no abraço
no afago
o corpo
escreve
e desenha
linhas
devaneios
o corpo quer-se
corpo
sem ausência
lânguido
voraz
exausto
corpo

segunda-feira, 26 de março de 2012

Os olhos são de vidro
e bate-lhes o sol
anda uma sombra na
parede, irrequieta com o movimento
do corpo.
É a minha dor atirada à
parede em bolas de tinta tensas
que se espalham no
branco-vazio da pedra.
Recorta-a, esfarrapa-a e cola-a numa
tela.
Expõe-me numa galeria
para que fora de mim,
histérica,
loucamente me veja ao espelho.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Então o amor foi embora.
Nada fica para sempre. Não se transformou em coisa nenhuma.
Só foi embora.
E fiquei ali à porta a acenar para o vazio, num sofrimento brutal
a senti-lo apertar-me as veias como que gritando
não me deixes ir.

No dia seguinte uma embalagem de kleenex
e um café forte
que com despedidas
fico sem dormir
ah e mais um corretor de olheiras
e pó - que fica sempre bem.
O amor para mim é
indecente.
praticado em esquinas de ruas
desvairadas,
camas viradas ao contrário,
olhado e profanado
pelo dedos.
sem razão
sem medo
de dizer
palavrões ao ouvido
ou alto
gosto mais ao ouvido
baixinho
quando foder
não é suficiente

sábado, 28 de janeiro de 2012

E então eu via o amor morrer
mais um bocadinho
às vezes em queda livre
no vazio
ou num tempo enrolado
em que nem um desfibrilhador
no máximo traria de volta um coração
desistente.
Segunda-terça-quinta...
sei lá
todos os dias eram bons para morrer.
num qualquer pararia.
os números caindo no ecrã
o som contínuo do aparelho
do pensamento culpado
sem hipótese de voltar atrás.