terça-feira, 9 de novembro de 2010

Passei a noite em claro
enquanto dormia.
Nomes, barulho
e caras desconhecidas.
Acordei com a chuva nos olhos
e a música a arranhar-me a pele.

Vomitei uma bola de músculo que bombeava.
Sangue nos dentes, olhos fora das órbitas.
Afinal, era só mais um dia que começava.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Queria ter a coragem de inventar que dormi com outro. Que o meu corpo por momentos deixou de te querer e preferiu satisfazer o desejo a continuar dormente e intocável. Telefonar-te quando o dia acabasse porque o meu tempo correu, tropeçou e voltou a correr e só naquele instante o tive para ti. A tua voz silenciada talvez acordasse se eu te dissesse o que pretendia. E aí poder-me-ias dizer És uma puta. Assim eu saberia que a tua tranquilidade se alterou, que viraste fogo porque a tua mulher teria dormido com outro, mesmo que o teu nome fosse o único a ecoar na cabeça dela. Poderias dizer-me És uma puta as vezes que quisesses que eu estaria a ter prazer em ouvi-lo. Pelo menos serias um homem ameaçado e obrigado a baixar os olhos para mim, que já te sou tão indiferente e tão dispensável. És uma puta - e da tua voz, através de redes de fios complexas, de sinais e códigos, eu poderia sentir o desatino do teu corpo, os teus olhos flamejantes e o orgulho que eu feri propositada e falsamente. Mas não. Nem sequer uma forma verbal, um artigo indefinido e um substantivo tens para me dar. Nem para me dizer És uma puta. E mesmo que fosse uma traição fingida e que nunca mais me tocasses sem pensar em mim nos braços de outro, que na tua cabeça ecoasse És uma puta, continuarias a ter-me.

Orfeu é Eurídice

O papel é branco e os meus dedos escrevem-te
sem tempo nem lugar
nem dia nem noite
num lugar só dia
num dia só noite

A lua cheia perfeita redonda
grávida de amores
A rua de paralelos está deserta
Ainda, suspiro eu
A varanda tem vasos de margaridas
e a minha alma partiu-se
Até ele chegar do supermercado
e trouxer um regador

Quebrada sinto-lhe os passos na cozinha
a torneira a verter vida e a música
a embalar-lhe os gestos
E revive a alma morta
e o precipício é o limite de veludo
onde o corpo repousa
O cais adormece embalado
nos raios de sol parcos
que deixam o dia.
É noite já.
Todos os lugares comuns me falam
com a tua voz.
O tempo sacode-me as entranhas
revolvidas pelo ciúme,
envenenadas de ti.

O cais sonha docemente.
O cais e as águas do rio que correm
serenas. A janela da tua casa
e a sombra por trás da cortina.
O tempo esventra-me a alma
quando acordo assustada a meio da noite
desejando uns braços quentes
que me agarrem o corpo no que resta da escuridão.

O cais - devagar acorda. Já é dia
e a navalha cortou o tempo.
Pedaço a pedaço o corpo cai.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Apeteces-me sem razão.
Apeteces-me agora
na confusão da vida e da cidade,
na confusão do meu coração indeciso
que não sabe se se desprende para ti
ou se se esconde em mim.

Vais-me apetecer logo
quando olhar em volta
e não te sentir
no quarto,
na cama,
na pele;
quando não me disseres
boa noite
e não sentir a tua
voz
a falhar.
Apeteces-me mais do que me lembro querer-te ontem.

Dorme comigo esta noite

Não me atires palavras amargas
quando os meus lábios se cerrarem e palavras de mel
não se cravarem na tua
pele.

Envenena-me...
pediste-me há muito tempo atrás
quando eras apenas mais um dia mesclado de cinzento.
Envenena-me...
peço-te eu secretamente todas as manhãs
quando o sol entra pela fresta da janela que eu me esqueci de fechar
e reparo que a cama está vazia,
que o meu corpo não descansou entrelaçado no teu;
que a tua boca ávida não me vai dar um beijo rápido e rotineiro
e o teu riso fazer-me rir.

Envenena-me, deixa-me pulsante de ti;
envenena-me quando a noite cair
e na madrugada soar a tua voz no meu ouvido.
Envenena-me quando eu estiver enlaçada em ti
mesmo que esteja tudo em silêncio
e que só se oiça a nossa respiração
compassada.

Dorme comigo esta noite.

segunda-feira, 1 de março de 2010

A mulher do gesto inquieto

A respiração controlada,
O peito que sobe e desce
À medida que o ar entra e sai
Corroendo-lhe os pulmões.
A mão pousada em cima do joelho
sereno e impassível.
Os olhos que abrem e fecham
sempre ao mesmo ritmo.

O olhar raivoso de mulher enciumada,
os músculos tensos que a roupa esconde,
a tez pálida,
o estômago que arde.
A mão que se une à outra,
os dedos contorcidos
e os pensamentos cindidos
a rebolar pelas veias
e a pulsar o sangue.

Dentro do mar há um tornado.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Odeio a sensação de simplesmente não saber. Eu. Logo eu. Eu conheço-me. Eu sei o que quero. Eu. Eu. Eu. Eu sou egoísta. Porque sim. Porque já pensei demasiado nos outros e esqueci-me de tratar de mim. Eu tenho objectivos. Eu sei sempre que rumo tomar. Mas agora não sei. Tenho as entranhas revolvidas e um coração idiota a fazer pressão para soltar as cordas a que está preso. E a deixar-me com insónias. Mas pior que isso é não saber. Simplesmente. Apenas. Continuo egoísta. Muito. E contrariar esse coração estúpido dá trabalho. É segurá-lo com força como se fosse um animal selvagem que nunca teve um carinho. Preciso de domá-lo, de puxá-lo até fazer sangue em mim para que ele pare. Mas ele insiste, teimoso. E eu chego ao fim do dia exausta de tanta luta. Tenho-o preso por mais umas horas. O sono é inquieto. E no dia seguinte, quando ele desperta com forças renovadas, as minhas estão cada vez mais gastas; o sangue pinga cada vez mais para o chão e corre cada vez menos nas minhas veias. E isto tudo para dizer que me perdi. E que o coração está a formar um exército e que eu estou sozinha. Todos por ele e eu por mim. É desigual, é injusto. Ele não se devia virar contra quem o trata e o cola quando se despedaça, quando encalha na vida; contra quem o salva de se afogar em sofrimento.
Odeio não saber.
Não posso dormir. Tenho um nó na garganta e o estômago embrulhado. Os olhos pulsantes, vibrantes. Ao mínimo deslize cairá uma lágrima guardada, talvez a única em meses. Deixei de chorar, desaprendi. Pensava eu. Parece que a minha vida se anda a desenrolar no pretérito. De tão imperfeito, saboreio-o mais que perfeito. Parece um retrocesso. Um desaprender constante de lições. Porque apesar de ter os olhos secos, há um coração que chora tão assustado. Tão retraído. Com receio de cair nas malhas terríveis do...
Pronunciar palavras torna-as reais, torna-as uma promessa e uma esperança. E tenho uma mão a calar a boca, a cortar-me a respiração. E tenho a outra a segurar o coração que a tanto custo colei com fita-cola, a apertá-lo contra o peito, a dar-lhe corda e a puxar o fio. Para o ter só para mim. Para não entregar. Porque parece que só as minhas desajeitadas mãos sabem onde está o que sobrou do rolo. E é um segredo guardado a sete-chaves.
Não posso correr o risco de o voltar a oferecer. Porque depois terei de ir a becos escuros resgatá-lo, levá-lo para casa e deixá-lo dormir acordado até poder voltar a colar as peças.
Dias em que, ao subir a escada,
pouso mal o pé e tropeço na minha vida.
Tropeço e não caio.
Só a pontapeio.Só a firo.
Deixei a minha vida à beira da morte.
Não numa cama de hospital,
mas na minha própria cama
entranhada nos lençóis que me cobrem
e ouvem sussurros de sonhos.

Dias em que, ao subir a rua,
o chão foge e a alma escorrega,
ágil,
feroz,
enraivecida,
sofrida.

Dias em que, ao retalhar o sono,
a minha vida é uma insónia constante.
Os olhos inchados de cansaço,
o corpo com fome,
a alma inerte.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

E se o teu mundo fosse um caderno vazio
Arrastado pelo vento do silêncio?
E se a tinta da tua caneta não deslizasse
no papel amassado e amachucado?
E se o teu sangue envenenasse as tuas veias
E a tua respiração fosse cortada no meio de uma sílaba esquecida?

E se o meu corpo se arrepiasse de cada vez
que imaginas tocar-me?
E se a tua voz se misturasse na minha voz
melodiosamente sincronizadas, brutas, vadias?
E se o teu corpo esventrasse o meu?
E se o meu corpo retalhasse a tua alma
E fizesse dela uma manta esfarrapada para se cobrir?

E se, na noite emudecida,
soasse o grito do nosso corpo-sangue
na memória da vida que restou?

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Não basta um cortinado de seda grená
entre e cidade e eu.
Chove torrencialmente lá fora.
A rua está deserta, invadida pela escuridão
E pelo medo.

Abri a janela para respirar.
A minha alma retorce-me as entranhas
Ao mesmo tempo que o vento espanca
as árvores ainda despidas.
Ao fundo uma pessoa conhecida
Que desafia a Natureza.
A janela aberta sorri.
O meu vulto tenta falar.
As palavras não passam na garganta.
Puxo pela voz.
Falha.
O coração esvai-se em sangue.
E o homem,do outro lado da rua,
espera por uma reacção minha.

Fala o meu corpo.
Insaciável.
Adúltero.
A pele arrepiada.
Ele pronuncia o meu nome.
O temporal abafa-o.
E a voz dele troveja, ecoa
na noite tempestuosa
que se abateu sobre mim.

Sem pensar, arranco a cortina
que lentamente definha no chão do meu quarto.
Perde a cor, grita de dor
Quando a piso
antes de sair
e abraçar uma nova vida.
Voltar a tragar palavras
A comê-las sofregamente
E travar o vómito e a agonia
Que sai dos meus dedos.

Ter-te nas veias, no sangue,
encher-me de comprimidos
para te matar dentro de mim.

Não gosto que te instales na minha vida
E faças dos meus dias um castelo de areia
Ameaçado pela vaga gélida do mar
que consome o Inverno na cidade.

E que me ofereças colares de conchas,
me afastes o cabelo e me sussurres ao ouvido
(porque os meus olhos vão fechar e eu vou saborear
o calor da tua respiração em mim)
palavras inebriantes enquanto dás um nó no fio.
E me faças mil e uma promessas
de noites passadas à lareira,
a garrafa de vinho meio cheia
e depois um coração vazio.
Dizes que precisas de um cigarro.
E eu, do outro lado da cama, estupidamente vestida,
Olho-te sem te ver.
Estás desesperado para sentir a nicotina correr
nas tuas veias e livrar o teu sabor
do beijo selvagem que pousei nos teus lábios.
Queres respirar-me através de umá máscara de oxigénio
Desligada da botija.
Os teus olhos ansiosos espreitam indecentemente as minhas pernas
que dizes serem longas e macias
e controlas o desejo de te aproximares de mim
Sem temer a violência do meu sangue.

E o terror que mortificou a minha carne
afaga o ar que eu e tu respirámos,
o mesmo ar misturado e retalhado
e novamente inalado
por dois pulmões
que desesperam por
um
cigarro
ou um fumo qualquer
que os esbata na luz do
dia.
Só tenho um pedaço de papel que rasguei
ao acaso
e não tenho vontade de preenchê-lo
mas quero escrevinhá-lo.
E escrever coisas, quaisquer coisas
mesmo que não façam sentido
porque hoje que a música do violino
me embala a tarde
tudo o que ouvir será
o mais perfeito.

Olho para as minhas mãos:
o verniz vermelho-escarlate lasca
como a minha alma
a caminhar para o abismo de papel
que os meus dedos ingenuamente rasgaram
porque o tempo se arrasta a passos largos...

Suspiro.
Sinto o ar que expiro
E a música que sobre de
tom
e me desperta
e arranca o bico de carvão do papel
que tem linhas direitas
onde tudo o que escrevo está
indubitavelmente
torto.