segunda-feira, 12 de maio de 2008

Metáforas

Gosto de comboios. Talvez porque sejam grandes e viajem por muitas terras grandes bem como aldeias nos locais mais remotos, pelo menos aqui. Um comboio é uma excelente fonte de inspiração para os poetas errantes que vagabundeiam quando o sol se põe e o manto negro que acaricia meio mundo se enche de pequenos pontinhos luminosos. As linhas, os vagões, as estações, o maquinista, os caminhos que se cruzam! Tantos elementos que, sabiamente conjugados, resultam numa bela metáfora que faz chorar jovenzinhas com tendências sentimentalistas como eu.
Gosto de comboios porque tenho alma de poeta. Também gostaria de me perder na noite escura para procurar coisas feias e realidades obscuras. Basta de adornos, de iluminação, de pessoas cujas caras consigo ver por inteiro. Hoje quero reconhecer partes. Não quero avaliar o todo. Quero poder prestar atenção aos detalhes. Os olhos daquele que ali está junto ao mar sentindo a água arrepiar o seu corpo serão de que cor? Estarão brilhantes? Mortiços? Tristes? E aquela rapariguinha de cabelos escuros cuja difusa sombra apenas distingo? O que a leva a não se voltar para a cidade e perder-se no mar, gritando um nome de três sílabas que não entendi? Chora! Porquê? Desespera! Pobre menina. Tenho de me aproximar. Não posso ficar indiferente a esta dor que parou o Tempo. Aproximo-me dela, tremendo de frio, misturando-se na areia macia. Chora ainda. Diz-me que não gosta de chorar assim, de sentir a lágrima percorrer o seu caminho, de a sentir quente, pesada; não gosta de saber o seu destino, prefere-a bruta, violenta, incendiada, mas fugaz. Acrescenta ainda que não sabe. E pergunto-me eu "mas afinal não sabe o quê?". A muito custo, evasiva e misteriosa, fala-me de uma promessa em silêncio, de um segredo que a atormenta, mas que, nos seus tempos, foi agradável. Não se acalma, chora cada vez mais, devastada por uma dor inigualável, entendo eu. Sofre sozinha e calada, carregando sobre os ombros a certeza de que foi punida sem ter errado. Acender fogueiras e sorrisos não é crime. Guardar segredo é cumplicidade e partilha. Não sei de onde brota este discurso, mas não a conforta. Diz que a cumplicidade está no passado e que hoje lhe restam memórias que a torturam, e que odeia e que sente raiva e nojo e... Interrompo-a. Eu conheço esta história. Ela não sente raiva, nem nojo, nem ódio. Ela ama. Apenas. Sem especificar o jeito, a intensidade. Confusa, só, o pensamento leva-a por veredas de ciúme e posse que a enlouquecem. Já não sei o que dizer mais! Ela não se acalma! Ela chora, grita, contorce-se tanto de dor que dou por mim a pensar se o coração quente não a queimará por dentro.
Agora que me encontro em casa, lembro-me da noite de ontem. Perdi o rasto da rapariga desesperada, devorada por um sofrimento indelével. Também eu, mais calma, recordo os pormenores dos seus olhos: incendiados, tristes, doloridos, ciumentos, apaixonados. E, subitamente, o meu fraco coração desenterra uma história do passado que jamais esqueci. E revejo cada gesto dela como se meu fosse, porque também eu, em tempos, acendi fogueiras e sorrisos que acabaram por adormecer. Decido, agora, pegar no livro escondido na prateleira mais alta da estante, aquele em que guardei uma memória e tentar reconstruir o meu castelo de cartas apesar do vento forte que se aproxima.

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