segunda-feira, 19 de maio de 2008

Prisioneira

Têm passado os dias. Todos iguais, todos parecidos, mas todos diferentes. Infelizmente continua o sol. A chuva fugiu, mas as minhas lágrimas tomam o seu lugar, formando um exército feroz que defende veementemente o trono que ocuparam. Quisera eu não sentir, não saber ler olhares, não saber significados de palavras. Conhecê-las brutas e impiedosas e esquecer o conteúdo, esquecer memórias... Ainda não parou de doer. Dói cada vez mais mesmo estando o fim próximo...
Vislumbro, ao longe, um molho de chaves. Olho os meus pulsos feridos, ensanguentados, presos, imóveis. Não me posso mexer, não sei se me é permitido respirar, falar... Só os meus olhos têm liberdade... Chorando, especialmente magoados, gritam, vociferam sem dó nem piedade; já não distinguem o que verdadeiramente sentem do que aquilo que o dolorido coração os leva a sentir. O corpo está cansado de lutar, o pensamento é constante, a agridoce lembrança...
Dias há em que quero arrancar o coração a sangue frio. Talvez uma dor no peito me fizesse esquecer o tormento, a angústia... O carrasco aproxima-se sorrindo maliciosamente. Por momentos acreditei que soltasse as correntes de ferro quente que ferem o meu corpo. Mais uma vez me enganei. Dele não posso esperar mais que dor, que desprezo, que desilusão, que tristeza. O grande momento aproxima-se. Agarrando-me o braço violentamente, arrastando-me pelo chão, atira-me para a fogueira e senta-se em frente ao triste espectáculo contemplando o meu fim.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Já deveriam ter secado minhas lágrimas. Depois do prazer, a dor, as paredes brancas e o silêncio de uma casa que já não me pertence, mas onde continuo a entrar diariamente apenas para me magoar. A máscara pesa. Como pesa... Horas e horas presa ao meu rosto, apertando o meu coração. A corda na garganta está a ficar apertada e a minha voz a desaparecer, baixando lentamente de tom até ser votada ao silêncio e ao esquecimento. E o esquecimento magoa. Sinto mil flechas trespassarem-me o corpo, diária e continuamente. Mas sobrevivo a todas, arrastando-me por aí e tentando esconder o sangue puro que suja os locais por onde passo, sozinha nesta dor que há meses me atormenta. De vez em quando chove e o chão pinta-se de vermelho vivo. Mas volta o sol e a dor. As flechas, aos olhos dos outros invisíveis, são lançadas dos seus próprios olhos, através das suas acções. Dói tanto que tento não sentir; mas é impossível. Fere ainda mais a lembrança: a volúpia da posse, violenta, instintiva, fugaz.
Não quero mais recordar; o coração não o permite, nega-se a fazê-lo, insurge-se, lutando comigo. Jamais vi exército tão feroz, tão beligerante, tão intenso. Rendo-me. As forças esvaem-se, a minha mão não consegue empunhar o sabre ocioso. Contudo, minto. Ainda me resta uma só força, intensa, que exorcizará o veneno que corre dentro de mim e matará meu coração imortal.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Metáforas

Gosto de comboios. Talvez porque sejam grandes e viajem por muitas terras grandes bem como aldeias nos locais mais remotos, pelo menos aqui. Um comboio é uma excelente fonte de inspiração para os poetas errantes que vagabundeiam quando o sol se põe e o manto negro que acaricia meio mundo se enche de pequenos pontinhos luminosos. As linhas, os vagões, as estações, o maquinista, os caminhos que se cruzam! Tantos elementos que, sabiamente conjugados, resultam numa bela metáfora que faz chorar jovenzinhas com tendências sentimentalistas como eu.
Gosto de comboios porque tenho alma de poeta. Também gostaria de me perder na noite escura para procurar coisas feias e realidades obscuras. Basta de adornos, de iluminação, de pessoas cujas caras consigo ver por inteiro. Hoje quero reconhecer partes. Não quero avaliar o todo. Quero poder prestar atenção aos detalhes. Os olhos daquele que ali está junto ao mar sentindo a água arrepiar o seu corpo serão de que cor? Estarão brilhantes? Mortiços? Tristes? E aquela rapariguinha de cabelos escuros cuja difusa sombra apenas distingo? O que a leva a não se voltar para a cidade e perder-se no mar, gritando um nome de três sílabas que não entendi? Chora! Porquê? Desespera! Pobre menina. Tenho de me aproximar. Não posso ficar indiferente a esta dor que parou o Tempo. Aproximo-me dela, tremendo de frio, misturando-se na areia macia. Chora ainda. Diz-me que não gosta de chorar assim, de sentir a lágrima percorrer o seu caminho, de a sentir quente, pesada; não gosta de saber o seu destino, prefere-a bruta, violenta, incendiada, mas fugaz. Acrescenta ainda que não sabe. E pergunto-me eu "mas afinal não sabe o quê?". A muito custo, evasiva e misteriosa, fala-me de uma promessa em silêncio, de um segredo que a atormenta, mas que, nos seus tempos, foi agradável. Não se acalma, chora cada vez mais, devastada por uma dor inigualável, entendo eu. Sofre sozinha e calada, carregando sobre os ombros a certeza de que foi punida sem ter errado. Acender fogueiras e sorrisos não é crime. Guardar segredo é cumplicidade e partilha. Não sei de onde brota este discurso, mas não a conforta. Diz que a cumplicidade está no passado e que hoje lhe restam memórias que a torturam, e que odeia e que sente raiva e nojo e... Interrompo-a. Eu conheço esta história. Ela não sente raiva, nem nojo, nem ódio. Ela ama. Apenas. Sem especificar o jeito, a intensidade. Confusa, só, o pensamento leva-a por veredas de ciúme e posse que a enlouquecem. Já não sei o que dizer mais! Ela não se acalma! Ela chora, grita, contorce-se tanto de dor que dou por mim a pensar se o coração quente não a queimará por dentro.
Agora que me encontro em casa, lembro-me da noite de ontem. Perdi o rasto da rapariga desesperada, devorada por um sofrimento indelével. Também eu, mais calma, recordo os pormenores dos seus olhos: incendiados, tristes, doloridos, ciumentos, apaixonados. E, subitamente, o meu fraco coração desenterra uma história do passado que jamais esqueci. E revejo cada gesto dela como se meu fosse, porque também eu, em tempos, acendi fogueiras e sorrisos que acabaram por adormecer. Decido, agora, pegar no livro escondido na prateleira mais alta da estante, aquele em que guardei uma memória e tentar reconstruir o meu castelo de cartas apesar do vento forte que se aproxima.
O relógio já correu, já parou e voltou a correr.
E, mesmo assim, eu não consigo entender
O sofrimento que me invade sem pudor.
Sinto na pele as vergastadas dolorosas
Como se fosse uma escrava
De um destino que escolhi
Porque segui o prazer.

Estou presa numa fogueira que cresce diariamente,
Que me queima, que me deleita, que me fere
E incendeia. Ah! Poder evadir-me!
Poder respirar sem a culpa e a dor
Percorrendo o meu corpo.

Há capítulos arrancados no meio do livro
Que a tanto custo tento guardar na mais recôndita prateleira.
Talvez um dia, quando o medo se afastar de mim,
Perturbe a outra personagem só para saber
O que, de facto, aconteceu naquela história.
Tenho plena consciência
De uma ilusão inconsciente
Que um dia já foi a mais pura das verdades.
Quisera eu ser Inverno e não dar flores nem frutos.
Daria, assim, sorrisos, dissimulados em momentos de loucura.

Tenho plena consciência que, afinal,
O relógio correu e corre demasiado depressa
E que a minha voz, quando sair da prisão,
Parará de gritar e de vociferar palavras doces,
Sentidas, cruéis, amargas.

Tenho plena consciência da linha do tempo.
Aprendi a distinguir passado e presente,
Apesar de continuamente os misturar,
Tendo de acreditar em noites que não voltam.

Tenho plena consciência que deixei o barco naufragar
E que me esqueci de me salvar.
Mais um dia cinzento e de raios de sol que espreitam pelo imenso céu furioso acima de todos nós. Olho-o, suplicante, sempre suplicante, como se procurasse um sentido, uma força que descobri que tenho e cuja fonte desconheço. Talvez seja eu. Ou talvez seja aquilo que tento fingir que sou, sinto, vivi. Um dia, não sei quando, a máscara cairá e, sendo ela do mais frágil vidro, partir-se-á no contacto com a terra quente, pulsante.
Dissimulada, sempre dissimulada, consigo encarar aquilo a que um dia chamei de fantasia, de utopia até. Todavia, um dia descobri que até o mais absurdo dos sonhos se pode tornar realidade. Permite-me o coração sangrento acrescentar que, na linha da vida, o caminho tem uma encruzilhada poderosa, voraz, inconsequente.
Um dia (hoje, ontem, amanhã...) perguntaram-me por que me ardiam os olhos. Emudeci. O coração, constantemente alerta, ainda não me deixa dar resposta às perguntas que me fazem. Eu não posso falar. O segredo está aos olhos de todos. Constato que todos nós estamos demasiado ensonados para prestar atenção aos outros, aos pequenos sinais que nos deixam, às reacções que não são deles, mas que apenas estão condicionadas por determinada situação. Mas, para meu gáudio e alívio, o sono de que padece a Humanidade deixa-me a salvo.
Mentiria se dissesse que quero ficar; mentiria se dissesse que quero ir. As cordas, as correias de ferro ardente prendem-me os pulsos. Hoje só posso viver de metáforas para disfarçar mentiras que, espontaneamente (sendo sincera, por precaução, necessidade e hábito), se formam na minha mente. Suplicando por clemência, bradando aos Céus para que o castigo acabe, uma lágrima cai quando a noite chega, partimos depois de um fugaz encontro num desses tão comuns corredores de desejo e, silenciosamente, tento convencer o néscio coração de que ainda existe uma fogueira, um incêndio, uma flor cujo néctar percorreu cada linha do seu corpo viril, protector, sabendo que, quando a realidade me possuir, ficarei no chão, esvaindo-me em sangue e sofrendo ainda mais.
Tenho a leve sensação de ser uma marioneta
Subjugada a ti.
Pior. Um boneco articulado que se curva,
Que cai. Os fios emaranharam-se
Quando quisemos, novamente, parar
E separar as águas.