É aquela música que nem sequer conheço que enche de tristeza tudo aquilo que sou. Corpo. Alma. Coração. Leio e releio frases insignificantes, mas cuja conotação aperta uma corda no meu pescoço, amachuca o meu ser. É no compasso daquela música que baila a minha recordação, trauteando episódios de um passado presente. O maestro fugiu de mim para bem perto se instalar, para me deixar a ensaiar peças de recitais sem a sua presença. Só o seu olhar distante, ardente.
Recordo-me de o ver ao longe. Reconheço o que um dia me pertenceu. Figura elegante, cabelos negros. E o sorriso mais franco que alguma vez observei. Risonho. Minutos depois encontra-me na escada. Eu desço. Ele sobe. Não me atrevo a olhá-lo. Não consigo. E nesse momento a melodia confunde-se connosco. E eu quero fugir e ficar. Mas ele ignora e continua. Aparentemente sereno, o olhar de sempre.
O relógio avança em marcha lenta, o calor do sol entra pela janela e aquece-me a face. O meu pensamento regressa. Eu, num tumulto silencioso, acendo um cigarro e fito o horizonte. Sol, céu azul, passarinhos a cantar, canteiros carregados de flores jovens, frescas. Só dentro de mim continua o Inverno, o céu cinzento e tristonho, a chuva, os relâmpagos e trovões, o frio.
Regresso. É a minha vez de subir a escada intuitiva que acolhe os meus passos e os do maestro. Um som tranquilo passeia pelo edifício. Tenho de o encontrar. Reconheço o estilo, a força da música. É ele, só pode ser ele. Encontro-o e observo-o de longe sem lhe dar a entender que ali estou. Sinto-o novamente em mim. O maestro envolve-se com o piano diante de si. A suavidade e firmeza dos seus dedos nas teclas, olhos fechados, o sorriso que é meu. Sinto-o invadir-me como outrora fez. Toca piano como se no meu corpo tocasse. Beija-o, deseja-o. Perde o controlo dos movimentos, sabe a pauta decor.
Afasto-me.
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