domingo, 22 de março de 2009

Estava escuro na avenida. O relógio já despertara toda a cidade. Sentia-se o cheiro do café acabado de fazer, o açúcar dos bolos polvilhava o ar frio da manhã. Carros, autocarros, gente apressada pelas ruas, luzes de candeeiros solitários que estavam prestes a adormecer. E nevoeiro, muito nevoeiro. Casacos de lã e botas. Já era Primavera e ninguém a vivia. Luvas, cachecóis e gorros. E faces sem expressão, rostos sem sorrisos. Nem sei se vale a pena descrever os passeios que sussurram e que uivam quando os saltos da mulher os pisa, ferindo-os na sua dureza. Ela, cativante, atravessa a avenida vezes sem conta. Vai ao banco, ao café, respira no coração da cidade. Óculos escuros a esconder os olhos negros. A carteira pesada no ombro. Sempre no mesmo, no esquerdo. O coração preso a bater descompassado, a seguir um ritmo desconhecido, mais morto que vivo. Resiste ao aroma do café, ao açúcar dos bolos, ao nevoeiro atordoante, ao sol escondido.

sexta-feira, 20 de março de 2009

"O que é?", perguntaste-me tu ao entardecer. Os últimos raios de sol iluminavam a avenida. Carros e buzinadelas, o passeio cheio de sapatos apressados, de sacos de compras nas mãos. Uns que vêm em silêncio, aquele que ouve música e sente o ritmo pulsar e explodir no próprio corpo, deixando o movimento apoderar-se da sua alma em plena rua. E com toda a gente a olhar. Reparo no esgar de espanto do motorista do autocarro. Por pouco não teve um acidente ao olhar para aquele.
Insistes. "O que é?". E eu tardo em responder. Estou a saborear as palavras, a tentar encontrar o tom exacto. Estou a mastigá-las devagarinho e custa-me dizê-las porque as sinto. Nunca reparaste que a minha voz é muda? Só o papel e a pena me preenchem. Só quando a mão desenha letras e forma palavras.
O grande muro que cerca a propriedade, a fonte, o silêncio, o instinto. Instinto. Nós. Amor e ódio, céu e inferno. Tudo no mesmo minuto. Uma escadaria cheia, um risinho nervoso.
Vamos as duas pela avenida. Perguntas-me "o que é?".
São as cores do Outono, Mariana.
Não vou dizer nada com sentido
Nem com formas
Nem com palavras
Nem com imagens
Nem com símbolos
Nem com gestos
Só com olhares
E histórias dentro de olhares
E noites vincadas em dias
E sóis de Inverno que trazem constipações
E narizes ranhosos e tosse
E que prendem a voz na garganta
E que fazem pigarrear antes de falar.


Bola. Vermelho. Azul.
Menina. Sol. Lágrima.
Comi um coração de papel.
Não tem de ter sentido,
Só precisa de estar cheio.
Hoje já era escuro e a cidade estava ausente.
Mas lá. Era eu no meio do nevoeiro, as luzes cansadas
Dos carros que querem ir para casa.
Apeteceu-me engolir a cidade.
Já não sentia o chão nem o meu próprio corpo.

Pensei na morte, na escolha. Se eu quisesse, num segundo misterioso,
Atravessaria a rua sem olhar para os carros que seguiam a alta velocidade.
Tinha perdido o meu corpo, tê-lo-ia deixado ausente de mim,
Ausente de cheiros, de cidades, de pessoas que se cruzam comigo todos os dias
Em dias diferentes quando atravesso a rotunda.
O pensamento estava ausente do meu corpo, a voz ausente da garganta,
O grito ausente da voz.
A lágrima presente no olho.

domingo, 8 de março de 2009

Essa coisa, a paixão

Era bom que pudéssemos ir ao supermercado e pedir meio quilo de paixão; deve durar para o mês todo. Ou se calhar não. Mas também havia a hipótese de podermos regressar à superfície comercial e comprar mais. Só para abastecer o stock. Para o caso de acontecer algum imprevisto, tal como uma inundação, ou uma fuga de paixão, ou ainda um incêndio. No primeiro caso, estragava-se, secava e talvez ainda desse para usar a dita...paixão; no segundo, perda irremediável, pois seguir-se-ia uma explosão, um incêndio (o terceiro), muito fogo e queimaduras na pele. Se calhar também no coração, mas tenho as minhas dúvidas. Então, aviados de um quilo ou mais de paixão, felizes e contentes, regressamos a casa e começamos a consumi-la lentamente no dia-a-dia e ardentemente nos dias de ímpeto.
Mas (e infelizmente há sempre um!), ainda não descobri em que prateleira se escondeu a malvada! Se calhar não procurei bem entre as prateleiras das guloseimas e dos chocolates. Ou se calhar encaixou-se no corredor do vinho. A verdade é que não perdi muito tempo. Fiz as compras que tinha a fazer, paguei e pus os sacos no carro para arrancar a grande velocidade. Apesar de não ter descoberto a dita, desconfio que afinal não se pode comprar e muito menos num supermercado.
Essa coisa, a paixão, vem de repente e é mal educada. Não pede permissão para entrar nas nossas vidas, instala-se no nosso quarto, na nossa cama, usa a nossa roupa, abre-nos as gavetas e encontra os tesouros que temos escondidos. Escreve com a nossa mão no nosso diário. Mais, usa o nosso corpo, o nosso perfume preferido, calça todos os dias os nossos sapatos, mesmo quando são de salto fino e alto e fazem doer a alma. Instala-se porque sim. Ou porque não. O facto é que se instala e se apodera de nós.
Essa coisa, a paixão, que, soube agora que não se vende mesmo nos hipermercados; essa, a mal encarada, a que não pede licença, essa afinal até nos adormece quando o sono não vem, fazendo promessas de um dia melhor, lançando no ar a hipótese de um olhar, de um beijo escondido, de uma carícia trocada sem querer.
Mas essa coisa, a paixão, também pode causar dano (se ela realmente se vendesse, os senhores diriam que passou de prazo). E, continuando com esta gíria, quando isso acontece, reclamamos com quem, com o quê? Vamos a uma espécie de DECO apresentar uma reclamação? Escrevemos no próprio livro das superfícies comerciais? Exigimos o quê de volta? A quem?
Essa, coisa, a paixão, é pena que não se possa deitar fora e esquecê-la no fundo de um saco de plástico que os senhores do lixo recolhem, por cá, às quartas-feiras e domingos.
Bandida! Quando é apanhada em flagrante, faz uma expressão inocente. Descarta-se das culpas todas e diz que vai ficar sossegada e que não vai voltar a mexer nos corações ingénuos de novo. Mas não, é uma criança com a sede de mexer no proibido, de se sujar na terra, de correr o dia todo sem se cansar, de se lambuzar de chocolates, de dar uma risada e limpar as mãos à camisola branca que só assim ficou porque esteve dias na lixívia.
Essa coisa, a paixão.
Não há fotografias para as minhas mãos angustiadas rasgarem,
Não há retratos para arrancar da parede,
Não há cartas para queimar,
Não há objectos para atirar para o chão.

Há olhares clandestinos que se devem extinguir.
Há beijos para guardar em caixas velhas e empoeiradas,
Palavras que agora se confundem numa caixa de música
E que não são gritadas porque já não há corda.

Há uma tatuagem para arrancar.
A sangue-frio.
Há um coração para matar
Com uma faca afiada
Ou um punhal enferrujado.
Nunca me custou tanto descer uma rua.
Nem era pelo salto alto que ficava preso nos paralelos;
Não era pelo sol abrasador que me queimava a pele,
Não era pelo ventinho que me despenteava.

As pedras olhavam-se, sentindo pena dos meus passos errantes,
Chorando comigo por um caminho que jamais voltarei a fazer.
Eram poucos metros de rua. Suficientemente perto para chegar ao carro,
Suficientemente longe de mim.

Senti o sabor da terra molhada, fiquei com as mãos brilhantes quando caí.
E por acaso estava lá um homem. Compus-me. Os óculos de sol ainda escondem os meus olhos.